sábado, agosto 20, 2016

JOÃO DE TICO E SABOROSO



Geralmente o que escrevo aqui, são relatos baseados em fatos reais, evidentemente, adequando às características do texto. Contos, causos, quase sempre com humor e descontração, mas , no caso deste texto, preciso descrever um fato triste, porém marcante para a comunidade santacruzense .

João de Tico morava na rua Lourenço da Rocha, esquina com a rua Pe. João Jerônimo, de frente para a casa de Miguel Farias.Saboroso era o apelido de um cidadão que andava pelas ruas da cidade, com um caldeirão grande na mão , vendendo doces "sonho de noiva". Andava na cidade, de bermudas, com o caldeirão e gritando alto: saborosoooooo.
O que lhe fez jus ao apelido.

João de Tico, casado com a Professora Margarida Queiroz, pai de Marcos, conhecido na cidade como Tchan. Saía diariamente para seu sítio na Caiçarinha, montado em seu possante jumento, mestiço de pêga, bom de sela, com a passada macia e também, bom de cangalha, quando era preciso. Na hora de sair, colocava dois litros e meio de milho, de molho em uma bacia, para alimentar o jumento, na volta do roçado, por volta das onze e meia da manhã, todos os dias.
Era magrinho de meia altura, simples e alegre, falava "assungando " as calças, para se fazer entender. 

Um dia voltou do roçado, exatamente onze horas, para chegar em casa às onze e meia, hora de alimentar o jumento, que já saía com o passo apressado, guiado pelo instinto e a vontade de comer. Passou numa passada ligeira por toda extensão da Cravina, e João, de olho na BR.

Saboroso, passou pelo Apolo 11, nessa mesma hora, atravessou a pista, ao lado da casa de Maria Anjo, e desceu na margem da rodovia, gritando, saborosoooooo.Já ia passando no cruzamento da BR com a continuação da rua da Cravina com a entrada para a cidade, próximo da oficina de Vicentinho e da casa de João de Gan.
Do outro lado, vinha descendo João de Tico, já freiando o jumento , que descia muito rápido, com a cabeça virada, sem atender ao freio.

Vindo de Currais Novos, na direção de Natal, apontou uma carreta cegonha de transportar automóveis ,que passou muito veloz na frente do posto de gasolina e desceu ao lado do DNER.
Ao se aproximar do cruzamento o motorista viu o jumento de João de Tico , começando a atravessar a pista, buzinou estridente, tentou freiar e desviou o caminhão. Ao tentar desviar, entrou no acostamento e atingiu em cheio, Saboroso, que foi atirado longe, na vala encostada ao início do Riacho do Pecado.
Na manobra brusca, a carroceria acertou com força, João de Tico, montado no seu jumento que foi atirado longe.

Foi uma comoção geral em toda a cidade de Santa Cruz.
Sinto-me na obrigação de relatar, para resgatar a memória daquele povo e das pessoas que ajudaram a construir aquela comunidade.

Chl
Ago/2016

sexta-feira, agosto 19, 2016

LUIZ DE PRIMO

Primo Pereira era um homem de estatura média, com uma perna mais curta do que outra, proprietário da Fazenda Camará, na Serra de Santo Alberto. Homem respeitado por sua seriedade, simplicidade e honradez. Após a morte de sua esposa, na cidade de Cruzeta, onde moravam, ele dividiu a propriedade entre os filhos, Luiz, Pedro, Manoel e José. Luiz ficou com a sede da fazenda e os outros três ficaram com as partes anexas. Cada um fez sua própria sede.

Pedro, Manoel e José eram agricultores e viviam inteiramente dedicados às suas famílias. Luiz, além de agricultor era comerciante e fazia negócios nos municípios vizinhos de Santa Cruz, como Campo Redondo e Coronel Ezequiel. 

Primo resolveu tomar Lourenço como compadre, pois eram amigos e vizinhos de propriedade, e o afilhado escolhido foi Luiz, que só chamava seu padrinho de "Padim Lórenço". Vendia toda a safra de algodão na usina de Nóbrega & Dantas que Lourenço era o gerente. Todas as atividades da fazenda, que Luiz tinha alguma dificuldade, consultava "Padim Lórenço.

Tempos depois quando assumi a gerência da usina e passei a comprar a safra de algodão de todos os filhos de Primo, que eram meus amigos, especialmente José que era meu vizinho na rua Antônio Henrique, comprava também todo o algodão que Luiz adquiria de outros agricultores, como comerciante.
Em julho de 1981, com o falecimento do meu pai (Lourenço), resolvi levar minha mãe (Marinete) em uma viagem de 25 dias pela Europa, para ajudar a superar a perda e afastá-la um pouco do clima pesado que ficou em nossa casa. No final de 81 e início de 82,viajamos.

Deixei tudo acertado no Banco do Brasil, através de promissórias rurais, no dia 15 de Dezembro de 1981, todos os pagamentos do algodão recebido dos maiores fornecedores e que ainda entregavam o produto. Preço feito, quantidade acertada, pagamento assegurado, viajei.
Quando estou no hotel em Viena, na Áustria, recebo um telefonema de Santa Cruz, era Fátima minha secretária, avisando que houve um erro do funcionário do banco, justamente no contrato de Luiz e precisava de um nova assinatura minha. Eu ainda demoraria duas semanas pra voltar. Foi o suficiente. Os brincalhões começaram a aperrear Luiz, dizendo que eu havia fugido com o dinheiro dele.

Luiz que acreditava em tudo, saiu falando com todo mundo dizendo:
- Chaga de Padim Lórenço, pegou meu dinheiro e danou-se pro "estrangeiro"e nem sei se volta mais. O pior é que Padim morreu e eu não tenho quem me ajude.
Mandei pedir pra Lourdes Apreciado, em quem ele confiava, que era chefe do escritório, para explicar que , que em 15 dias eu chegaria e acertava tudo.
Xavier, gerente do BB, também ajudou a tranquilizar o agoniado Luiz.

Papai quando deixou a gerencia da usina, dedicou-se inteiramente à fazenda e duas vezes por anos, vacinava o gado contra o baba (aftosa) e incentivava os vizinhos a também vacinar o rebanho deles.

Um dia encontrou Luiz e foi logo ouvindo, "bença padim",-Deus te abençoe, meu filho - respondeu papai- já vacinou seu gado ?
- Ainda não.
- Pois compre a vacina na cooperativa que no domingo eu levo os homens pra vacinar.
Meia hora depois chega Luiz no escritório.-Pronto, comprei. Ô remeidim caro da mulesta, padim. Domingo eu espero o senhor.

No domingo, logo cedo, papai pegou Manezão e Cassimiro, que trabalhavam na usina e seguiu pra Sto. Alberto para levar Zé Zuca, Zé Preto e Olinto Lourenço, para ajudar na vacina.
Chegando no Camará, o gado já estava preso, eram uma 50 reses, e começaram a laçar os mais mansos e vacinar.

Uma hora depois, já haviam vacinado mais da metade e restava só o gado mais arisco, então Lourenço pediu:
- Luiz, meu filho, traga uma parede (tira-gosto) pros homens tomarem uma, que aqui só tem "imbu".
Luiz imediatamente gritou :- Joana , padim tá pedindo uns pedaços de galinha.
Salete prontamente trouxe e começaram a comer e beber. Recomeçaram a vacina e o gado mais arisco começou a dar trabalho, pra laçar e pegar "a muque".

Mais uma hora e ainda faltando umas cinco reses, Lourenço pediu de novo, outra parede.
Luiz, levantou-se foi até a cozinha e disse, baixinho:
-Salete, bote logo meu almoço, antes que padim e esse cabras acabem com a galinha toda.

Chl
Ago/2016



O MOTORISTA DO PADRE

Mosenhor Emerson Negreiros, foi pároco de Santa Cruz, por muitos anos. Foi responsável pela construção da atual Igreja Matriz, de Santa Rita de Cássia, edificada no mesmo local onde antes existia uma pequena igrejinha.
Tinha muitas atribuições na comunidade, além de administrar as capelas dos distritos vizinhos, como, Melão Japi, São Bento do Trairi, Campo Redondo, Lajes Pintadas etc. Para isso utilizava um Jeep Willys, que percorria todas essas localidades, com o auxilio de um motorista, Veludo.

O padre tinha um grande envolvimento com a comunidade e participava de ações comunitárias como esporte, música , teatro e cinema. Reunia alguns jovens, no alpendre da Casa de Dona Júlia, onde hoje é o Bairro 3 a 1, para tocar sanfona, violão e cantar.

Veludo era seu auxiliar de todas as movimentações e viagens. Era um negro forte, alto, risonho e brincalhão, toda a cidade gostava de Veludo.

Em uma de suas folgas, avisou ao padre que iria com uns amigos para uma festa de rua , com barracas e leilão, em Campo Redondo.
Chegando na festa, sentou-se em uma mesa e imediatamente pediu uma cerveja, casco escuro e super gelada; já botando banca.

A cerveja chegou, começaram a beber, pediu mais outras, até que começou o leilão. A primeira galinha assada que saiu, Veludo arrematou, apenas levantando o braço, sem sequer saber qual o preço que estava. Continuou bebendo e arrematando, apenas as galinhas, que já somavam seis.

Já era madrugada, o leilão havia terminado, quando as pessoas começaram a ir pra casa e a festa dando sinais de terminar. Veludo , nessas alturas, já estava meio embriagado, mas bem consciente de tudo que se passava. Olhando para um lado da barraca, percebeu que a comissão do leilão estava passando nas mesas para arrecadar o dinheiro dos arrematantes. Veludo era um dos maiores.

Quando a comissão chegou na mesa vizinha, Veludo encheu um copo com cerveja, bebeu todo de um gole só, olhou para um lado e para o outro, revirou os olhos e caiu com o rosto em cima da mesa, quebrando garrafas, derrubando copos e o prato de farofa com os ossos das galinhas.
- Corre, corre, acudam aqui - gritava o chefe da comissão do leilão.
Veludo, babava, revirava os olhos, roncava alto e respirava agitado com dificuldade.
- Pega um carro e leva esse homem pra Santa Cruz agora, direto pra Maternidade (único hospital que existia), manda acordar Dr. Ferreirinha ou Dr. Demócrito para acudi-lo - ordenava Manoelzinho Norberto, tabelião.

Os amigos de Veludo que tinham fretado um jeep de quatro portas, para ir à festa, colocaram-no deitado no banco de trás e aceleraram para Santa Cruz. Depois da descida da Serra do Doutor, quando passou na Malhada Vermelha e entrou na curva do Riacho Fechado, de Joaquim Tavares e chegando na entrada para Lajes Pintadas, Veludo abriu os olhos e perguntou - Já passamos do Bento Nunes ? -Já, respondeu Meireles - já estamos chegando na entrada do açude do Alívio. Veludo levantou-se e disse:
- Vamos tomar a saideira lá em Maria Anjo, que eu faço um vale lá. Vou passar uns dois anos sem ir em Campo Redondo.

Todas as vezes que o padre ia pra lá, Veludo tinha febre, diarreia, dor de cabeça etc. mas pra Natal , não tinha doença que impedisse porque ele adorava a capital.

Mons. Emerson ia com frequência à Natal, fazer compras para a paróquia e resolver alguns assuntos da Diocese. Em uma dessas viagens ele pediu para veludo passar no Alecrim, na Igreja de São Sebastião, para trocar umas ideias com o pároco de lá. Entrou na casa paroquial, ao lado da igreja e Veludo estacionou o Jeep do outro lado da rua, na sombra de um "pé de fícus", em frente a uma padaria.

Eram quatro horas da tarde e Veludo já estava sentindo fome e sabia que só iria tomar uma sopa, mais tarde, lá nas Marias , depois da Reta Tabajara, pois o padre sempre parava lá. Justo nessa hora, a padaria começou a retirar do forno, o pão da tarde e o cheiro invadiu as narinas de Veludo, que encheu a boca d'água. Entrou na padaria, pediu um pão francês dos grandes, comprou 50 gramas de manteiga de lata de 18 kg, daquela que Dona Zefinha, vendia na padaria e Waldeci de Mário Pinto, vendia na feira, enrolada num papel celofane. 

Encoutou-se no pé de fícus e começou a comer o pão. Nessa hora, passou uma senhora, elegante, bem vestida e puritana, que devia ir para a igreja se confessar; olhou pra Veludo, com desdém e falou, em um tom grave:
- Devia ter acanhamento, comendo um pão no meio da rua.
Veludo, bem calmo, olhou pra mulher e respondeu :
- Eu vou bem alugar uma casa só pra comer um pão.

Chl
Ago/2016